Por Rudá Ricci
Rudá Ricci (sociólogo) e André Singer (porta voz da presidência da república no governo Lula)
Alertado por um amigo, li, somente agora, o artigo de André Singer (Folha de S. Paulo) intitulado "Esquerda ou Direita?".
Gosto de André, sua humildade e sua importante tentativa de interpretar a realidade atual. Para quem já assistiu suas participações em debates acadêmicos, deve ter percebido como foge de padronizações (a despeito de cair em várias em seu último livro) e reconhece limites. Nada a ver com a arrogância de praxe de acadêmicos da USP.
Este estilo pessoal exige um tom cordial, como ele adota, para manifestar discordâncias. Tentarei. Mas já peço desculpas pelos meus arroubos italianos.
O artigo, em meu entender, incorre em alguns erros.
O primeiro: Singer afirma que os protestos teriam a peculiaridade do estilo horizontal de organização. Ora, nos anos 1980 este era o estilo da maioria dos movimentos sociais nascentes, inspirados em inúmeras teorias, do catolicismo comunitarista das comunidades eclesiais de base aos sovietes russos tão valorizados pela literatura trotskista. E ainda mais, pelas teorias autonomistas ou dos novos movimentos sociais. Havia de tudo e a democracia direta fazia concessões apenas aos modelos de representação delegada, aquela em que o representante não tem autonomia nenhuma, sendo um mero porta-voz da assembléia que o elegeu.
Singer dá um salto, portanto, ao sugerir que antes da horizontalidade das mobilizações de rua desta semana, só havia sindicatos e partidos. Ledo engano. Aliás, esta vertente organizativa esteve na certidão de nascimento do PT, está em seu manifesto e na sua mais cara inovação em gestão pública, o orçamento participativo.
Segundo erro: a revolta contra as instituições precisa ser canalizada para a sua revitalização. Aqui é mais complicado. O que, afinal, são instituições? São guardiãs da moral, dos valores e crenças sociais. Ora, se elas não se inspiram nestes valores, se não se alimentam das ruas, se estão descoladas do cotidiano dos indivíduos, mergulham no que Durkheim denominou de anomia, ou, ausência de norma ou regra de coesão. Singer desconheceria que as mobilizações atuais estariam justamente denunciando este hiato? Seria o caso de refletirmos se é o caso de revitalizarmos as atuais instituições de representação ou superá-las. Nada que chegue perto do anarquismo, populismo ou fascismo. A história é outra e não valeria a pena transformar a dúvida em embate épico.
Terceiro erro: considerar que se trata de um mera contestação de classes médias tradicionais, que estariam fisgando as frações conservadoras das camadas populares, via apelos contra a corrupção, parece desconhecer o poder do apelo desta bandeira. Aqui entramos numa seara perigosíssima. A ofensiva contra a corrupção é bandeira da direita? Mas, então, todo ataque ao malufismo, ao Sarney e velhos coronéis do atraso político tupiniquim que o PT desferiu em seus primeiros passos significou oportunismo ou infantilismo? Singer sugere, afinal, que o que estaria ocorrendo neste momento foi um estratagema empregado pelo PT algumas décadas atrás? Se for, o PT estaria absolvendo a classe média tradicional neste ímpeto oportunista de momento.
Sejamos mais claros. As mobilizações e passeatas dos últimos dias não são de direita. São um campo aberto, de disputa de rua, um dos momentos mais nobres da nossa democracia contemporânea. Mais: revela que estes anos de poder deseducaram as forças políticas que governam o país em relação a este campo de disputa. Anos atrás, seria o campo preferido da ação política. Lembro de Lula acenar para este campo nas diversas vezes que a direita - esta sim, direita clássica - ameaçava com instauração do pedido de impeachment. O que teria acontecido de lá para cá?
Ao final do artigo, Singer revela que também compreende este envelhecimento precoce das lideranças de massas. Afirma que à esquerda brasileira caberá mostrar a cara e propor um programa que aposte na ampliação do bem-estar que as massas exigem. Enfim, parece evidente que esta esquerda embalada pelo poder não estaria mostrando a cara e não estaria sabendo expressar um programa de ampliação de direitos sociais. Caso contrário, as ruas nunca teriam sido um desafio tão pecaminoso como transparece no artigo de Singer.
Resta um último erro que, em meu juízo, o autor comete. Afirma, logo de início:
"Convém esclarecer, antes que haja qualquer mal-entendido, que a democracia não pode funcionar sem partidos e que os sindicatos, apesar de todos os problemas, continuam a ser o melhor instrumento que o trabalhador tem para defender seus interesses."
Faltou demonstrar este imperativo. Os partidos políticos modernos são estruturas criadas no século XIX. Há uma miríade de teorias e estudos que revela o quanto se burocratizaram desde então, perdendo sua eficácia como instrumento de representação de interesses. Em tempos de interesses difusos, esta limitação se agravou. Pergunto à Singer se os partidos estiveram, nos últimos anos, junto aos nossos jovens, nos bares, baladas, grupos de pagode e funk, nos grafites, nas redes sociais, enfim, inseridos no seu cotidiano. Estiveram próximos? Estiveram ao menos presentes? Os partidos não teriam sido os protagonistas da burocratização excessiva das entidades estudantis, tão atuantes em décadas passadas e que não conseguem liderar as mobilizações juvenis dos últimos dias?
Tenho certeza que para André o que questiono não é novidade.
É verdade, como dizia Vianinha, que nem tudo que é novo é revolucionário. Pior que isto, contudo, é não ser nem novo, muito menos revolucionário. Seria a expressão do ultra conservadorismo.
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