sábado, 23 de outubro de 2021

CENTRÃO, CORRUPÇÃO AFRONTOSA E AUTORITARISMO - O LEGADO DE SÉRGIO MORO E DA CRIMINOSA LAVAJATO


Não se combate a corrupção com cruzada moralista (Danilo Pereira - publicado no CONJUR)

A operação "lava jato" surgiu como uma cruzada religiosa contra a corrupção. A tese de que a política estava corrompida e que somente o Poder Judiciário e o Ministério Público teriam condições morais de purificar as instituições foi propagada por todo país. Jornalistas empolgados com o lavajatismo passavam dia e noite anunciando que o país alcançaria o paraíso pelas mãos do juiz Sergio Moro e dos procuradores da República liderados por Deltan Dallagnol. O que deu errado na operação? Por que, em vez do paraíso, o Brasil caiu no colo do bolsonarismo? 

Entre as muitas chaves de interpretação do lavajatismo está o moralismo udenista. Formado durante a 4ª República (1946-1964), o moralismo udenista se destacava por suas investidas virulentas contra governos que não estavam alinhados com seu programa político. Foi assim contra Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. E como toda campanha moralista, o que realmente mobilizava os udenistas era a seletividade no combate à corrupção. Corruptos eram apenas os seus adversários políticos.

Nessa perspectiva, não havia nos sermões udenistas uma real preocupação com o aprimoramento das instituições, de modo a permitir que a administração pública fosse mais transparente em seus atos. O que efetivamente ocorria era o uso da campanha anticorrupção como fundamento para a destituição de governos eleitos democraticamente. Como corruptos eram apenas os outros, o udenismo almejava a anulação política de seus adversários para impor o seu padrão de moralidade nada republicano: um país governado apenas pelos seus impolutos quadros.

Por meio de campanhas semelhantes aos antigos autos da fé — como na época das inquisições —, o moralismo udenista procurava sobrepor-se ao Direito para realizar seus planos políticos, de modo a fragilizar a noção de legalidade como limitação do poder e proteção das liberdades. Na democracia, direitos e garantias fundamentais não podem ser relativizados com a justificativa de que o valor mais elevado da sociedade é o combate à corrupção. Todos nós queremos que os desvios de recursos públicos sejam devidamente investigados, processados e, caso existam provas, que o autor dos desvios seja punido. No entanto, se o objetivo é promover uma ideia de virtude e pureza moral, o que temos é a promoção do arbítrio, que no tempo do incorruptível Robespirre serviu para corromper o devido processo legal e enviar muitas vítimas para a guilhotina.

O moralismo udenista foi um dos grandes responsáveis pelas instabilidades políticas da 4ª República. Suas pregações radicais, sempre apoiadas no ativismo político dos quartéis, foram responsáveis pelo suicídio de Vargas em 1954, por ameaças militares contra a posse de Kubitschek em 1955 e pela deposição de Jango em 1964. E com o golpe-civil militar veio a ditadura, a tortura, o desaparecimento de presos políticos e o crescimento da corrupção.

Com os militares no poder, empreiteiras se enriqueceram; militares e políticos assaltaram os cofres públicos, sendo que o país não podia fazer nada, já que os órgãos de controle externo haviam perdido sua autonomia funcional; o Congresso e o Judiciário estavam sob o domínio dos generais; imperava a censura na imprensa; e a maior parte da oposição encontrava-se no exílio, na cadeia e nos cemitérios. Como é possível perceber, o moralismo udenista não trouxe nenhum ganho democrático para o país e ainda ampliou as possibilidades de corrupção dentro da administração pública, pois não existe qualquer transparência dos atos públicos em regimes políticos baseados no mando, no segredo e na força.

As bases ideológicas do moralismo de hoje não são diferentes das do passado. A lava jato fez do moralismo udenista o mote de sua campanha nacional. Violou a lei, vazou interceptações telefônicas, praticou abusos em diversas prisões, realizou acordos de colaboração premiada na base da ameaça e reuniu, dentro de um mesmo bloco de ação, juiz e procuradores, de modo a anular qualquer distinção entre o ato de julgar e o ato de acusar. Nesse sentido, toda violação do devido processo legal acabava sendo justificada com o argumento de que os fins justificavam os meios. Resultado: muitos holofotes, muitas prisões, a imprensa glorificando a operação, enquanto a política e as instituições eram completamente desacreditadas perante a opinião pública.

O vazamento das conversas nada republicanas entre o juiz Sergio Moro e seus procuradores escancarou um projeto de poder do lavajatismo. Da mesma forma que a UDN instrumentalizava a campanha anticorrupção para alcançar seus objetivos políticos, o lavajatismo também utilizou a cruzada anticorrupção para realizar seu projeto de poder. O juiz Sergio Moro, por exemplo, nem fez questão de aguardar muito tempo para assumir publicamente quais eram seus reais objetivos. Logo após a eleição de Jair Bolsonaro, o juiz federal abandonou a toga e assumiu o Ministério da Justiça.

Após o entusiasmo lavajatista, agora o país é acalentado pelas mãos do centrão, principal base de apoio do governo extremista de Jair Bolsonaro. E como ficou o combate à corrupção? Por acaso a corrupção acabou? De forma alguma. O que vemos atualmente é a presença da corrupção nas situações mais afrontosas: esquema de desvio na compra de vacinas; plano de saúde sacrificando a vida de seus pacientes em nome do lucro; mais de seiscentas mil mortes por Covid após a atuação negacionista do governo; e instituições desgastadas após constantes ameaças de golpe. A verdade é que a lava jato não deixou nenhum legado positivo de combate à corrupção. Pelo contrário, os holofotes que tanto impulsionaram a fama do juiz Moro e seus procuradores apenas serviram para fragilizar o Estado de Direito brasileiro.

O que se pode concluir, com base na nossa experiência mais recente, é que não se faz combate à corrupção por meio de campanha moralista. Na democracia, o Estado de Direito estabelece as condições e os limites para qualquer apuração. Fora dessas condições não há combate à corrupção, mas, sim, promoção pessoal, muitas vezes à custa de cargos públicos que exigem prudência e discrição no seu exercício, como no caso da magistratura, do ministério público e da atividade policial. Além disso, o combate à corrupção depende do aprimoramento das instituições, de modo a torná-las cada vez mais transparentes e acessíveis aos cidadãos. Quanto melhor a qualidade da nossa democracia, mais eficientes serão os meios para se combater a corrupção. Imaginar que a corrupção pode ser combatida por meio de operações-espetáculos não passa de devaneio dos ingênuos e oportunismo dos espertos. O udenismo e a "lava jato" estão aí como prova.
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 é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar), doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica e do grupo Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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