terça-feira, 7 de abril de 2015

Nossa cultura política

Ao longo do século XX, foi exceção a normalidade democrática. E em toda a história, a participação popular, por ser combatida, é minúscula

por Marcos Coimbra — publicado 07/04/2015 03:39


Nossa sociedade convive com naturalidade com extremos
de desigualdade e abismos intransponíveis entre cidadãos

Ao se considerar nossa trajetória, seria muito esperar que a cultura política brasileira fosse democrática e moderna. Nenhum país de passado semelhante conseguiu tal proeza. Parte da crise de imagem da presidenta Dilma Rousseff e de seu governo decorre de como essa cultura se estrutura e funciona. É outro dos componentes da situação atual fora de sua responsabilidade, que se juntam àqueles que provêm de decisões tomadas para agravar as dificuldades presentes.

Desde que nos entendemos por gente, nossa sociedade convive com naturalidade com extremos de desigualdade e abismos intransponíveis entre os cidadãos. Um sintoma, para recordar um fato que todos conhecem, é termos sido o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão.

O sentimento antipopular das elites e das velhas camadas médias é tão antigo quanto o Brasil. Elas pensam dessa forma desde a colônia e assim chegaram ao século XXI. Entre nós, a solidariedade com o próximo e a disposição a participar do debate em busca de soluções para dilemas coletivos sempre foram baixas. E pioram diante do avanço do individualismo, que alimenta uma cultura onde a indiferença é regra e ninguém se sente verdadeiramente responsável por nada. Onde os indivíduos transferem aos outros a solução de seus problemas e esperam que o governo aja como se fosse sua babá.

Os marchadeiros e paneleiros da atualidade apenas fingem o desejo de assumir as rédeas da sociedade. Querem, no fundo, recapturar o Estado para recolocá-lo a seu serviço e deleitar-se em berço esplêndido com a recompensa.




Mesmo depois de proclamada a República, o Brasil continuou a ter um sistema político minúsculo. Até a Revolução de 1930, tão graves eram as restrições à participação eleitoral que somente comparecia às eleições entre 2% e 5% da população. Após a restauração da democracia em 1945, a proporção subiu, mas permaneceu perto de 15%. Mais de dois terços da população adulta não tinham representação política quando veio o golpe de 1964, há apenas cinco décadas.

Ao longo do século XX, a normalidade democrática foi exceção. Fomos submetidos a duas longas ditaduras e sofremos mais de uma dezena de golpes de Estado, entre os bem e os malsucedidos. Militares das Três Armas saíram dos quartéis para derrubar governos eleitos ou impedir a posse do vencedor, sempre em resposta aos apelos de civis inconformados com a democracia. O golpismo parece inscrito nos genes da cultura política brasileira. Nenhuma surpresa que as oposições atuais o revigorem.

Nossa cultura é antidemocrática não apenas por ter aversão à presença do povo no centro da vida política. Um de seus traços mais característicos é o culto à excepcionalidade, que só admite líderes “notáveis” e considera que o cidadão comum é inapto para ocupar “cargos elevados”, em especial a Presidência da República.

O fato é que, ao contrário de seus predecessores imediatos, a imagem de Dilma Rousseff não tem essa marca. Mais que qualquer presidente moderno, e talvez também em relação aos antigos, a presidenta sempre foi percebida, tanto quanto é possível a alguém que chega a seu posto, como uma cidadã comum. É o que chamam, com alguma razão, de “falta de carisma”. Quase sempre, sem perceber nisso uma bem-vinda novidade.

Nas representações ideológicas mais típicas do período que vivemos desde os anos 1990, Fernando Henrique Cardoso foi o “intelectual brilhante”, que, a golpes de genialidade, teria racionalizado e modernizado o capitalismo brasileiro. Lula, a “expressão verdadeira do povo”, que, com sensibilidade e compromisso social, promoveu a democracia substantiva e a civilização de nossa sociedade.

E Dilma Rousseff, que lugar teria entre “gigantes” como esses? Que trajetória épica poderia justificá-la?

Nossa cultura política, constitutivamente autoritária e elitista, exige de quem exerce a função de presidente uma predisposição a ocupar um lugar solar. Ela não consegue livrar-se do mito do presidente como centro do sistema político, em torno de quem orbitam as instituições e seus integrantes.

Este segundo mandato de Dilma pode ser decisivo para a modernização da política brasileira. Dele podemos sair com uma cultura mais democrática, menos suscetível ao golpismo e mais contemporânea, emancipada de mitologias que sempre nos limitaram.

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